era uma vez um vilarejo no alto de uma montanha. as pessoas que moravam ali eram felizes e tranquilas. elas plantavam tomates e criavam carneiros. todas as manhãs, as pessoas que ali moravam saíam de suas casas, levantavam os braços e agradeciam ao sol. e assim, a vida seguia.
um belo dia, enquanto as pessoas do vilarejo realizavam seu ritual matinal, alguém notou que um homem subia a montanha. eles acharam estranho, pois não era comum receber visitantes. apenas o mascate aparecia, uma vez ao ano, trazendo panelas, tecidos e brinquedos do mundo lá de baixo. curiosos, eles observavam o homem que escalava a montanha. ele vestia apenas um manto velho cobrindo seu corpo e, em sua mão, trazia uma colher. o vilarejo o apelidou de Forasteiro.
o Forasteiro os cumprimentou e foi até o centro do vilarejo. ele se ajoelhou e começou a cavar um buraco com a colher. todos ficaram curiosos com essa cena. o Soldado marchou até o homem que cavava e perguntou o que ele estava fazendo. prontamente, o Forasteiro respondeu que estava cavando um buraco para plantar uma árvore. não havia leis que o proibissem e ele não fazia mal a ninguém. então, o Soldado o ignorou e voltou a fazer a sua ronda.
o vilarejo fazia parte de um grande reino de um rei bondoso. o rei enviava soldados por todo o reino para que seu povo se sentisse seguro. aquele vilarejo era muito pequeno e muito distante da capital, por isso, recebera apenas um único soldado. o Soldado gostava de seu trabalho, que era simples e repetitivo. todos os dias ele acordava, agradecia ao sol e fazia longas caminhadas por toda a montanha. ele conhecia as trilhas, as cavernas, os animais e todos que ali moravam, e o povo gostava dele. o Soldado morava em uma casinha toda feita de pedras.
os dias passaram, e o Forasteiro continuava a cavar o buraco. ofereceram-lhe uma pá, mas ele recusou. ofereceram ajuda para cavar, mas ele também recusou. seu esforço era pouco recompensado, pois a terra da montanha era muito dura e ele demorava horas e mais horas para cavar apenas alguns centímetros. entretanto, isso não parecia abalá-lo. no começo, as crianças e as velhinhas do vilarejo o cercavam e faziam perguntas:
“qual é o seu nome?”, “de onde você veio?”, “que árvore você vai plantar?”
o homem sorria para todos e não respondia. ele apenas balançava a cabeça e continuava a cavar. as pessoas do vilarejo sentiram dó do homem e, todos os dias, levavam pães, queijos, tomates e água para ele. em pouco tempo, perderam o interesse no homem que cavava e ele se tornou apenas um personagem do vilarejo. ao final de um mês, a colher do homem havia se tornado uma deformidade de metal - torta e suja -, e ele continuava a cavar. ao final do mês seguinte, ele finalmente terminou de cavar o buraco.
ninguém notou, pois não sabiam até onde o homem pretendia cavar. as pessoas do vilarejo ficaram surpresas ao acordar, em uma manhã, e encontrar o Forasteiro de peito nu, dentro do buraco, com terra até a cintura. agora, ele se mantinha ereto e com os braços erguidos para o céu. quando o questionaram, ele apenas respondeu:
“irei me tornar uma árvore”.
riram dele; algumas pessoas bateram palmas, e outras o chamaram de maluco. por uma semana, ele foi a grande atração da vila. várias pessoas que moravam em pontos mais remotos da montanha vieram ver o homem que enterrara suas pernas dentro do chão. o Soldado perguntou ao Forasteiro se ele estava bem e pediu que ele saísse do buraco. o Forasteiro se recusou balançando a cabeça. as pessoas do vilarejo apostaram que ele desistiria em algumas horas, mas para surpresa de todos o homem continuou ali por vários e vários dias. não se viu o Forasteiro abaixar os braços ou reclamar de cansaço, frio ou calor. mulheres caridosas iam diariamente alimentá-lo, mesmo que ele nunca pedisse. davam-lhe água e comida em sua boca.
uma noite, durante a festa da colheita, um homem bêbado dançava e cantava, animando todos a sua volta. em algum momento da festa, este homem bêbado encheu um jarro de água e correu em direção ao Forasteiro. ele derramou toda a água na cabeça do Forasteiro, e todos riram. riram muito até as barrigas doerem. no dia seguinte, as crianças do vilarejo passaram a jogar água no homem enquanto cantavam canções em volta dele. o Forasteiro não reclamava e mantinha-se impassível. o Soldado pediu que parassem, pois assim o homem poderia adoecer. responderam que, se ele queria ser uma árvore, deveria aprender a ser regado.
conforme os dias foram passando, as crianças continuaram a molhá-lo cada vez mais e mais. os homens que voltavam das plantações de tomate e das criações de carneiros passavam em frente ao Forasteiro e faziam piadas com a cara dele. as mulheres pararam de alimentá-lo, alegando que era um trabalho ingrato já que o homem não as agradecia, e que aquilo não era mais da conta delas. o Forasteiro manteve-se calado e indiferente à água e às piadas. certa manhã, ao acordarem para louvar o sol, alguém notou que o Forasteiro tinha um corte na sobrancelha. ao seu lado, uma pedra manchada de sangue. foi um grande alvoroço, todos queriam saber quem havia atirado a pedra no homem enquanto o vilarejo dormia. o Soldado perguntou diretamente ao Forasteiro quem havia feito aquilo, mas o Forasteiro manteve seu voto de silêncio. o Soldado retirou um lenço de sua farda e limpou o sangue de seu rosto.
quanto mais os dias passavam, mais o Forasteiro emagrecia. agora, sem alimento, suas costelas apareciam, sua cintura afinou, e seus olhos estavam mais fundos. seu cabelo, barba e unhas cresciam rapidamente. seus braços estavam cada dia mais finos e fracos. o Soldado, que fazia sua ronda por ali todos os dias, teve pena do homem. as crianças caçoavam dele, os homens o xingavam, e os idosos espalhavam histórias sobre seu passado. alguns diziam que ele era um monge que havia renegado a humanidade, outros diziam que ele era um homem atormentado pelos deuses. o Ferreiro da vila acreditava que ele era um soldado do reino inimigo, que, arrependido de seus crimes, pagava assim pelos seus pecados. ninguém sabia como cada história havia começado, mas todas pareciam verdade e todas pareciam mentira.
o Soldado passou a alimentá-lo de dia e de noite. todas as manhãs, o Soldado levava pão e leite, e todas as noites, ele dava sopa, com uma colher, na boca do Forasteiro. ele narrava histórias de sua vida para o homem enterrado no buraco. ele falava sobre as montanhas, os rios e as árvores, e também descrevia como era a capital do reino e seus belos castelos. ele contou de seus antigos amores e da saudade que tinha de sua família. um dia, ele cantou uma cantiga antiga que sua mãe lhe ensinara, e o Forasteiro chorou ao ouvir, pois ele também havia aprendido essa canção com sua mãe, muito, muito tempo atrás.
certa manhã, ao levar pão e leite para o Forasteiro, o Soldado o encontrou muito machucado. o Forasteiro tinha vários ferimentos pelo seu corpo: arranhões, cortes e hematomas. alguém havia quebrado um galho nas costas do homem e também cuspido em seu rosto. durante a noite, o Soldado dormia em sua casinha de pedra, que era longe dali, portanto não vira nem ouvira o que havia acontecido. ele ficou furioso. foi de casa em casa perguntar quem havia feito aquilo, mas o povo, que antes o tratava bem, agora já não o cumprimentava nem respondia suas perguntas. eles batiam a porta na sua cara e caçoavam dele, chamando-o de jardineiro.
depois de frustradas tentativas de encontrar culpados, o Soldado voltou até o Forasteiro para limpar suas feridas. chegando lá, ele encontrou o Ferreiro puxando o homem pelos braços. o Soldado correu e empurrou o Ferreiro para longe. as pessoas saíram de suas casas para ver a discussão. o Ferreiro gritava que aquele homem era um soldado inimigo e que deveria ser expulso, que aquilo era loucura e que já haviam tolerado demais. o Soldado dizia que não havia crime ali e que o homem não merecia ser machucado e amedrontado. o Forasteiro continuava mudo. com a metade do corpo ainda enterrada, ele apenas se alongava e voltava à sua posição inicial, esticando tronco, cabeça e braços. seu cabelo já cobria seu rosto, sua barba estava emaranhada e suja. sua pele apresentava sinais de insolação e seu corpo definhava cada vez mais. o Soldado pediu que ele saísse dali, pelo seu próprio bem, pois mesmo sendo alimentado, ele morreria se continuasse naquela situação.
entretanto, ele sabia que o Forasteiro não sairia dali. algo no olhar calmo do homem lhe dizia isso, pois não havia tristeza nem raiva em seus olhos. ele não revidava os xingamentos nem chorava quando maculavam seu corpo. o Soldado decidiu montar uma barraca ao seu lado; a partir desse dia dormiria ao seu lado. ele limpou as feridas do corpo do Forasteiro com um pano molhado, cortou seus cabelos e sua barba, aparou suas unhas e cobriu com bandagens os cortes e hematomas. decidiu diminuir a distância de suas rondas para passar mais tempo com o homem enterrado. o Soldado passou duas noites acampado do seu lado, garantindo que ninguém o feriria durante a noite. isso mudou na terceira noite.
o Soldado acordou com um barulho do lado de fora da sua barraca. era o final da madrugada e o amanhecer se aproximava. ainda sonolento, ele se deparou com todo o vilarejo ali. estavam todos em pé, em um grande círculo, em volta dos dois. em suas mãos seguravam tochas; em seus rostos havia somente a frieza do desprezo.
o Soldado se desesperou e gritou para que se afastassem. aquilo era loucura, o homem não havia feito nada de errado, ele não pediu nada desde que chegou e nunca os tratou mal. inútil. as pessoas do vilarejo nada falaram. estavam mudas. elas apenas se aproximavam com as tochas. o Soldado não sabia o que fazer. ele olhou para o Forasteiro e viu, pela primeira vez, o medo nos olhos do homem. o Soldado, que nunca havia utilizado sua espada, retirou-a da bainha e a apontou para o povo. isso não os amedrontou. eles continuaram cercando os dois homens.
“por favor, parem. por favor, eu os peço”, clamava o Soldado enquanto balançava sua espada tentando afastar as pessoas e as tochas.
ele não viu quem arremessou uma grande pedra que acertou sua nuca. ele caiu no chão. várias mãos o agarraram e arrancaram sua espada e sua farda. ele gritava e esperneava. quatro homens o seguraram no chão. com os joelhos, os homens pressionavam seu corpo contra a terra, e com as mãos, seguravam sua cabeça para que ele encarasse o Forasteiro.
“se vocês o queimarem, o sol irá puni-los”, gritou o Soldado, e então a população do vilarejo parou de se aproximar.
eles se olharam e, aos sussurros, começaram a discutir se aquilo seria verdade. perguntaram à senhora mais velha do vilarejo sua opinião. o sol era sagrado, e utilizar do fogo para queimar outra pessoa poderia ser considerado um pecado? ninguém sabia. nunca haviam feito aquilo. não se sabe quem deu a ideia de acender tochas. enquanto todos pensavam e discutiam, o Ferreiro decidiu tomar uma atitude. sem que ninguém percebesse, ele voltou até sua casa e buscou um machado. um grande machado afiado que era usado para derrubar os pinheiros do topo da montanha. ele atravessou a multidão e, com as duas mãos, em um só rápido movimento, enfincou a lâmina nas costelas do Forasteiro. o sangue espirrou para todos os lados e se fez silêncio. dizem que durou uma eternidade, o silêncio. todos olhavam o corpo do Forasteiro caído no chão e o grande machado preso na metade de seu fino tronco. o grito do Soldado ecoou por toda a montanha. as tochas se apagaram uma de cada vez. no horizonte, o sol começava a nascer.
o sangue escorria para todos os lados, sem ser absorvido pelo solo. a montanha se recusou a beber aquele sangue. quando o sol finalmente nasceu, ninguém levantou os braços para louvá-lo. a passos lentos, as pessoas voltaram para suas casas e se esconderam atrás das janelas, pois ainda observavam o corpo dobrado no chão.
o Soldado chorava. ele continuou deitado e chorou por toda manhã, e somente quando o sol atingiu o topo do céu ele se levantou. naquele dia ninguém saiu de casa. todos continuavam escondidos, dentro de seus lares, observando tudo através das janelas.
o Soldado secou suas lágrimas com a palma da mão. ele se ajoelhou, ergueu os braços ao céu e olhou para o sol. depois, voltou à sua barraca, pegou seu cobertor e se cobriu. o Soldado foi até o corpo frio do Forasteiro, tocou sua testa e beijou seus lábios.
tornou a entrar na barraca mais uma vez. ao sair, ele segurava em sua mão uma colher. sem olhar para trás, ele desceu a montanha e nunca mais foi visto.
as pessoas que moravam ali eram felizes e tranquilas. elas contam essa história até hoje.
todo dia 19 me transformo em um gato
But above and beyond there’s still one name left over, And that is the name that you never will guess; The name that no human research can discover — But THE CAT HIMSELF KNOWS, and will never confess.The Naming of Cats — T.S Eliot (1939)
todo dia 19 me transformo em um gato II
II me apoiei no vaso e sentei no chão, meu corpo era só letargia. abrindo os olhos lentamente reparei a minha volta: o tapetinho amarrotado, vários vidrinhos de creme espalhados pelo chão, um rolo de papel higiênico quase todo desenrolado. esfreguei meu rosto algumas vezes, enquanto abria e fechava os olhos vi uma sombra passar na minha visão periférica.…
a tranquilidade de um vilarejo… até que aparece alguém com uma colher na mão e uma ideia absurda na cabeça. Engraçado como bastou um estranho plantado – literalmente – pra transformar aquela paz em puro caos. E claro, o pobre do soldado vira o único a lembrar que humanidade não é opcional. Moral da história? As raízes mais profundas são sempre as do preconceito e da intolerância, e tem gente que rega isso todos os dias. Tragicômico, mas quem nunca viu isso na vida real?
Ah, a moral dessa historieta – um épico de teimosia e hostilidade, quase uma balada do absurdo. Aqui, vemos a alegoria do forasteiro, um sujeito obstinado que decide fincar suas raízes, literalmente, enquanto o vilarejo observa, primeiro com curiosidade, depois com indiferença e, finalmente, com hostilidade.
A moral é crua: o estranho, o “diferente”, o “desajustado”, não apenas é visto como uma ameaça, mas se torna um espelho incômodo do próprio vilarejo. A humanidade aqui, representada pelos pacatos moradores, é impiedosa com o que não entende. Quando confrontada com o que sai da norma – um homem que decide se tornar uma árvore! – a resposta é escárnio, violência e, eventualmente, o linchamento moral e físico.
E no soldado temos outro símbolo: a consciência. Ele tenta ajudar, tenta entender, mas, no fim, é engolido pelo conformismo e pela crueldade coletiva. A solidariedade é combatida com ainda mais ferocidade que a excentricidade do forasteiro. A moral? A sociedade pode ser o pior algoz do indivíduo, e o pior – é sorridente e cúmplice enquanto perpetra isso.
que engraçado, estou neste exato momento escrevendo uma historia que se passa numa vila meio isolada e cuja protagonista é mascote. vou guardar seu texto pra ler depois