II
me apoiei no vaso e sentei no chão, meu corpo era só letargia. abrindo os olhos lentamente reparei a minha volta: o tapetinho amarrotado, vários vidrinhos de creme espalhados pelo chão, um rolo de papel higiênico quase todo desenrolado. esfreguei meu rosto algumas vezes, enquanto abria e fechava os olhos vi uma sombra passar na minha visão periférica. então lembrei Dela e percebi que estava na casa de uma pessoa que eu não conhecia tão bem assim. me levantei e fui em direção ao quarto procurar meu celular entre travesseiros e cobertas. cinco ligações perdidas e várias mensagens com sequências de interrogações. respondi meus amigos tranquilizando-os e avisei que os encontraria mais tarde. eu tinha uma história engraçada pra contar.
vesti minha cueca e fui até a cozinha beber água. tudo em silêncio, a dona da casa não estava. eu não deixaria um estranho dormindo no chão do meu banheiro. eu não estava em condições de voltar para casa de madrugada, ainda bem que ela deixou. no meio da cozinha me deparo com um gato preto de olhos amarelos, magricelo e esguio. não fugiu de mim, apenas me encarava com seriedade. fiz todo o ritual de falar em voz fina, estender a mão, me agachar, mas nada o atraiu. continuou me encarando de baixo pra cima, mas com uma severidade que me fazia sentir acuado.
“qual é o seu nome? cadê sua dona?”, perguntei.
o gato miou.
ele se virou e foi para um cantinho na cozinha onde havia duas tigelas com água e ração. o imitei e fui até a geladeira, abri, peguei uma garrafa de água gelada e tomei a melhor água que já tomei na minha vida. bebi em grandes goles, diretamente do gargalo, molhando meu peito e um pouco do chão. depois de guardar a garrafa abri um copinho de iogurte e tomei de uma vez só. esse precário banquete foi feito enquanto eu olhava de canto de olho para a porta da sala, eu estava morrendo de sede e fome, mas não queria ser pego assaltando a geladeira. fechando a porta notei a quantidade absurda de imãs, bilhetes e desenhos colados. bilhetes e recados com letras diferentes, a maioria em português, alguns escritos em alemão e francês. imãs de pontos turísticos famosos como o coliseu e o arco do triunfo. fotos instantâneas coladas de forma aleatória decoravam as bordas da porta, nelas apareciam a mulher que conheci e várias outras pessoas que imagino que sejam seus amigos e família. dentre essas fotos um mesmo homem aparecia em várias, em uma delas havia um coração e a letra “G” escritos no rodapé. peguei a foto e observei bem: era noite e o flash da câmera estourava a imagem. Ela, vestida com um casaco amarelo, sentada no meio-fio, encolhida e franzindo o rosto, a cara de que quem passava muito frio de madrugada. os cabelos negros esvoaçavam. Ele, ao lado, a abraçava com o corpo todo como se tentasse aquecê-la. Ela fechava os olhos como se isso fosse fazer o frio passar e o homem sorria com todos os dentes para o foto. pareciam jovens e felizes. me senti um pouco triste, não sei por quê.
coloquei a foto em seu devido lugar e fui até a porta da sala. estava trancada, claro. eu não tinha o número dela, não sabia em que parte da cidade eu estava, e pra piorar meu celular com 7% de bateria. na tela de bloqueio o relógio marcava uma e vinte seis da tarde. vinte de fevereiro. me resignei a esperar. sentei no sofá verde-limão e liguei a tv. passava o jornal esportivo de depois do almoço: vitória do são bernardo. o gato reapareceu e pulou no sofá. ficamos lado a lado assistindo televisão, tentei fazer carinho, mas ele se afastou e só voltou quando percebeu que eu não insistiria. conversamos um pouco, quer dizer, fiz alguns comentários sobre os jornalistas e as matérias que passavam e ele miava de volta. minha cabeça ainda explodia e mesmo bebendo mais água a sede não passava. comecei a ficar preocupado quando me dei conta de que era uma terça-feira, se Ela estivesse trabalhando só voltaria pra casa no final do dia, eu não queria perder minha tarde inteira ali.
voltei para o quarto e recolhi cada item que deixei espalhado. juntei carteira, relógio, celular, meias e tênis e os agrupei em cima de uma cadeira na sala. vesti camiseta e calça e fui até o banheiro organizar a bagunça que o gato fizera enquanto eu dormia ali. guardei os vidrinhos na bancada, enrolei o papel higiênico e dei várias descargas como se isso fosse apagar o fato de que havia vomitado até minha alma. depois escovei meus dentes com um pouco de pasta de dente na ponta do dedo, era o que dava pra fazer. lavei meu rosto, joguei uma água no cabelo e me senti bem melhor. agora era hora de comer alguma coisa, meu estômago já roncava. abandonei o pudor e fui até a geladeira, peguei três ovos, meia cebola e umas fatias de queijo. minutos depois comia um omelete enquanto assistia tv com meu companheiro felino. terminei de comer, lavei a louça e desliguei a televisão quando começou a passar um filme sem graça.
fui até a estante e procurei algum livro para passar o tempo, não encontrei nada que me interessasse. como eu havia notado na noite passada Ela tinha uma grande quantidade de livros de esoterismo e biografias, nada ali me despertava a curiosidade. procurei o livro do Eliot, mas não o encontrei. juro que sei onde ele estava exatamente, na terceira prateleira, mas hoje já não estava ali. isso só me fez querer procurá-lo com mais afinco e depois de vasculhar a estante toda não o encontrei. do sofá verde-limão o gato me encarava. peguei uma folha de papel solta entre várias outras na estante, amassei e joguei a bolinha no meio da bagunça da sala, mas o gato não se interessou. encontrei o livro na mesa de cabeceira do quarto. por dentro parecia mais desgastado: várias anotações nas margens, páginas dobradas pela metade, manchas de café e uma foto do poeta colada com durex na contracapa. li alguns dos primeiros poemas, mas não me cativaram, talvez o Frank O’Hara fosse realmente melhor. ouvi um barulho na sala e fui para lá a passos rápidos acreditando que seria Ela chegando do trabalho para finalmente abrir a porta.
o que encontrei foi o gato no meio da sala, encurvado e com os pelos do corpo ouriçados. o animal parecia soluçar enquanto contrações musculares faziam ele se contorcer aos poucos. uma grande massa de pelo, mole e molhada, saiu de sua garganta junto de vários sons guturais. mesmo após vomitar ele continuou se contraindo e se engasgando com mais nada. me agachei ao seu lado e observei a bola de pelo e num instante lembrei da noite passada. meu coração acelerou e minha boca encheu de saliva, parecia que, agora, seria eu a vomitar também. fechei os olhos e respirei com calma, afinal, foi só um delírio, certo? quando me olhei no espelho não havia nada na minha boca e mesmo se houvesse Ela teria me perguntado o que foi aquilo. na verdade, era eu quem deveria perguntar para Ela o que foi aquilo. por impulso decidi tocar na bola de pelo no chão e assim que minha mão se aproximou o gato me arranhou com suas unhas afiadas. de três linhas vermelhas brotou o sangue, que começava a escorrer, e eu xinguei todos os nomes que me vieram à cabeça. o gato não fez mais nada além de me encarar. fui até o banheiro lavar as costas da minha mão, que já começava a inflamar em volta dos arranhões. enrolei a mão e pulso com a toalha de rosto e voltei para sala decidido a brigar com o gato só para perceber que ele já havia se escondido. procurei na cozinha, no banheiro, entre os móveis e não o encontrei. cansado daquela situação toda e ainda com dor de cabeça decidi gastar o resto da minha bateria tentando descobrir pela minha localização no celular onde eu estava: o bairro, a rua e o nome do prédio e assim tentar ligar na portaria para pedir pro porteiro, se possível, abrir a porta.
fui em direção a cadeira onde deixei meu celular, enquanto digitava me senti vigiado. o gato me olhava escondido de algum lugar. fingi não perceber e continuei procurando no mapa, entre ruas com nome de gente, onde eu estava. rapidamente virei o rosto e flagrei o gato que me espiava por entre a fresta da porta do banheiro. deixei o celular de lado e fui até ele para repreendê-lo por sua má criação. minha mão ardia e coçava incessantemente. congelei assim que me aproximei. novamente, você pode não acreditar que isso é real, mas juro que vi esse gato sorrir. discretamente, apenas o suficiente para que eu duvidasse do que estava vendo. sua boca se curvava nos cantos formando um sorriso. senti um frio no estômago e minhas pernas tremeram. que porra era essa?? ficamos assim por uns segundos, nos encarando, e o barulho da chave abrindo a fechadura atrás de mim foi um alívio. me virei e Ela entrava no apartamento com várias sacolas plásticas cheias de compras de mercado.
“dormiu bem?”, ela perguntou, me olhando de cima a baixo, e começou a organizar as compras em cima da mesa da sala.
falei que não e que eu precisava ir embora, disse que meus amigos estavam me esperando na estação de metrô ali perto ou algo do tipo. enquanto inventava meias verdades pra sair daquela situação, o gato passou correndo por nós e atravessou a porta sumindo no corredor.
“seu gato fugiu”, eu disse, alarmado, enquanto apontava para a porta aberta com a mão enfaixada pela toalha de rosto.
“tudo bem, ele sempre volta”, ela respondeu sem mover os olhos das compras. “eu preciso que você vá embora, daqui a pouco vou receber uma visita”.
apesar de ter notado, ela não parecia se importar com minha mão enfaixada manchando sua toalha de rosto e não seria eu quem traria aquilo à tona. peguei carteira e celular, calcei rapidamente meus sapatos e me despedi. ela continuava indiferente, mais concentrada em organizar caixas de leite dentro da geladeira. atravessei a porta entreaberta e fui em direção ao elevador no corredor escuro. o detector de movimento parecia estar quebrado, pois por mais que eu balançasse a mão para o alto as luzes no teto não acendiam. atravessei o corredor a passos rápidos, mas sem enxergar quase nada. no final, na frente da porta do elevador, o gato me esperava sentado. estávamos a um metro de distância um do outro, ele havia se camuflado na escuridão e eu só fui perceber quando cheguei bem perto. dois olhos amarelos.
da outra ponta do corredor, a ouvi chamar:
“Gustavo, volta aqui”.
assim que olhei para trás o gato correu, por entre minhas pernas, em direção à luz que escapava de dentro do apartamento.
desde então, todo dia 19, ao dormir, me transformo em um gato preto e, por várias horas, não sei o que faço por aí.
todo dia 19 me transformo em um gato
But above and beyond there’s still one name left over, And that is the name that you never will guess; The name that no human research can discover — But THE CAT HIMSELF KNOWS, and will never confess. The Naming of Cats — T.S Eliot (1939)
labirinto branco/preto
o Mundo parece Completo e Inteiro, e eu, seu Filho, me encaixo perfeitamente nele (…) e por isso tenho de me perguntar: de quem é a memória que está falhando? minha ou dele? poderia ele, na verdade, estar se recordando de conversas que nunca aconteceram?
“eu preciso que você vá embora, daqui a pouco vou receber uma visita” vaapo !
eu acredito completamente que o narrador viu o gato sorrir