o Mundo parece Completo e Inteiro, e eu, seu Filho, me encaixo perfeitamente nele (…) e por isso tenho de me perguntar: de quem é a memória que está falhando? minha ou dele? poderia ele, na verdade, estar se recordando de conversas que nunca aconteceram?
Piranesi - Susanna Clarke
this is not for you
House of Leaves - Mark Z. Danielewski
permito-me escrever sobre esses dois livros somente com o que lembro e não lembro muito. me recordo de sensações e do descompasso. não me proponho a sinopses e enredo, não quero ir por aí.
na verdade não sei por onde quero ir, talvez apenas divagar, traçar caminhos confusos que me levem de volta ao ponto de início e nesse ponto já não será mais início, muito menos final.
ambos tratam de espaço e memória. dos caminhos físicos e mentais que vão e voltam. do reconhecimento de si e dos outros, de tudo que o cerca e daquilo que se foi. talvez a grande diferença seja na hostilidade entre as duas obras. se em Piranesi somos convidados à Casa, em House of Leaves somos aprisionados nela. talvez eu devesse me propor a sinopses e enredos.
na obra de Susanna Clarke, acompanhamos Piranesi, um homem que está há algum tempo vivendo na Casa, sem memória de seu nome original ou de como chegou lá. a Casa é um labirinto infinito, com inúmeros andares e corredores, todos brancos e austeros. o espaço é preenchido com infinitas estátuas brancas que revelam formas diversas: animais, pessoas, seres mitológicos. Piranesi está só e vive em companhia de peixes e pássaros, já não se lembra quem era antes de entrar no labirinto, mas isso não o incomoda, ele vive no agora. a relação de respeito entre ele e a Casa é recíproca, Piranesi não pretende desbravá-la e conquistar territórios, ele quer conhecer o que existe ali, pois assim se conhece também. ele nos convida ao seu mundo.
em House of Leaves estamos em cárcere privado, tanto pela casa quanto pela estrutura textual. não me alongo na proposta literária do autor, isso demandaria linhas e linhas e um esforço que não me convém. a leitura pode ser considerada difícil e intricada e, na maior parte do tempo, confusa. entre vários enredos e cronologia embaralhada temos um labirinto dentro de um labirinto. o que você faria se, da noite pro dia, no meio da sua casa, aparecesse uma porta que dá para um corredor escuro? existe algo que espreita lá embaixo. ao contrário de Piranesi, eles adentram a escuridão de um labirinto não com temor divino, mas sim com ambição e ganância. a frase “this is not for you” abre o livro, serve para nós - leitores - e também para um dos protagonistas, que abre um livro dentro de um livro.
não sei se forço paralelos entre as obras pelo bem da minha interpretação, talvez não importe. no primeiro, temos um espaço frio, mas estranhamente acolhedor, branco e amistoso. os perigos são os perigos naturais como chuvas e enchentes, há os perigos próprios da existência como frio, fome e sede, mas a Casa tudo provê. no segundo, temos apenas escuridão e delírio. o perigo mora no desconhecido, o oculto é o que fere mais. contudo, em ambos, talvez a maior aflição seja a Memória. Piranesi não tem recordação de quem era antes de entrar na Casa e somente através de diários consegue manter lembranças desde o dia em que acordou lá. House of Leaves segue pela compulsão ao registro: vídeos, diários, reportagens, áudios - tudo pode ser matéria da memória. se em ambos guardar o registro é fundamental, também é vital abandoná-los. avançar em território desconhecido requer coragem, mas principalmente também desapego a sala anterior. não é possível avançar parado no mesmo lugar. o labirinto exige de seu explorador a determinação de chegar ao centro. as memórias podem desenhar caminhos futuros e também embaralhar aqueles já atravessados.
ambas as obras são sobre travessia, jornada e caminhos como tudo na vida. Danielewski nos apresenta uma casa, em um subúrbio americano, que expande os limites do tempo e do espaço para nos arrastar pela dor. não há limites, temos ali a dor física e espiritual, a dor de perder a família e também alguns dedos, a dor de esquecer e de lembrar. a travessia se dá na carne. perde-se a sanidade pela falta de perspectiva: se tudo é caminho nada também é, as infinitas possibilidades são uma sina. a busca pelo final do labirinto é o anseio de não ter que fazer mais escolhas, de ter apenas um caminho a se tomar e talvez essa seja a maior angústia. sentimos alívio nas últimas páginas, mesmo sem saber se o final será drástico, não há aquela tristeza em terminar um livro. você não quer mais caminho algum. em um desfecho menos surpreendente, mas não pior, Piranesi nos dá a paz de ter todos os caminhos a nossa disposição. o mundo de Dentro e o de Fora existem e a escolha também. não sabemos os próximos passos, os caminhos são infinitos, e a Casa é Bondosa.
A transformação do eu que se realiza no centro do labirinto e que se afirmará em plena luz do dia, no final da viagem de regresso, e o final desta passagem das trevas para luz marcará a vitória espiritual sobre o material, e, ao mesmo tempo, do eterno sobre o perecível, da inteligência sobre o instinto, do conhecimento sobre a violência cega. (Dictionnaire des symboles: Mythes, rêves, coutumes, gestes, formes, figures, couleurs, nombres - Jean Chavalier e Alain Gheerbrant, 1997)
o espaço constrói a memória e a memória destrói o espaço. dentro de cada sala e corredor, importa mais o que está a frente do que aquilo que já se foi, sempre manter-se a direita não te garante chegar ao final, é necessário olhar em frente e escolher uma bifurcação que o levará a outras duas bifurcações. cabe à memória destruir o espaço, saber o caminho de onde se veio só vale se for para retornar a ele, nesses dois labirintos não há ruas sem saída, sempre é possível continuar em frente. no entanto, é crucial compreender que, ironicamente, nada é tão dicotômico: nenhuma dessas premissas serão verdades absolutas, certos reinos só se mantêm pela memória.
em House of Leaves, aprendemos que a visão não nos adianta de nada e que na escuridão seu único guia é a intuição. em certo ponto da história, a dupla que explora os porões infinitos da casa se dá conta que é inútil mapear os caminhos e voltar novamente a um corredor não é garantia de localização. memória e espaço estão em constante transformação. a leitura se torna mais agradável e real quando aprendemos a parar de lutar contra o labirinto. lay down all thoughts, surrender to the void. it is shining.
a beleza disso tudo, para mim, habita na oposição entre essas duas obras: Piranesi é tão claro que nos cega, as estátuas e paredes brancas, a linguagem simples e crua, tudo é insípido e asséptico, o minimalismo se funde a hospitalidade. enquanto isso, em House of Leaves, desde a primeira página a obra grita “não te quero aqui” e mascara sua ânsia em ser desvendada. só é possível atravessar o labirinto e suas várias camadas narrativas dando vários passos em falso em movimentos pendulares através dos poemas, recortes, diários e notas de rodapé. ao mesmo tempo que o livro exige quase um trabalho de detetive ele também só é decifrável abrindo mão de todo racionalismo. é preciso engolir o abismo. é preciso mergulhar em zona abissal; no final, a luz mora lá.
acabei de arranjar o house of leaves preu ler... gostei da sua introdução
sensacional! lendo assim não parece que os paralelos estão forçados, muito pelo contrário. a sensação é de enorme sintonia entre os dois textos, que é amplificada por ter contato com elas através da sua ótica e das suas sensações.
"memória e espaço estão em constante transformação"