But above and beyond there’s still one name left over, And that is the name that you never will guess; The name that no human research can discover — But THE CAT HIMSELF KNOWS, and will never confess.
The Naming of Cats — T.S Eliot (1939)
I
não quero te convencer se isso é real ou não. tenho mantido segredo, mas agora me sinto confortável para contar.
o resumo da ópera: fui enfeitiçado por uma mulher no começo desse ano. nunca mais a vi e, provavelmente, nunca mais a verei. ela não mora na minha cidade e todas minhas tentativas de encontrá-la novamente foram frustradas. não busco vingança, apenas queria tirar algumas dúvidas. gostaria de saber se há maneira mais fácil de transicionar entre formas. dormir doze horas seguidas no dia vinte tem me atrapalhado. tenho outros inconvenientes, como acordar com uma série de arranhões nos braços e perder sapatos, camisetas e, até agora, dois relógios. tenho atraído gatos de rua e venho sentindo minha língua um pouco mais áspera, mas esse último sintoma pode ser apenas psicológico. confesso que das primeiras vezes me senti confuso e irritado; agora já estou acostumado.
no começo desse ano, fui para são paulo com um grupo de amigos. não conhecia a cidade, tudo me pareceu excessivo e bagunçado, como já havia sido informado. não fui assaltado e posso dizer que me diverti bastante. dos vários dias que fiquei lá, estive quase sempre na companhia desses amigos. por uma questão de privacidade e logística não fiquei no mesmo apartamento que eles. os dias passavam quase iguais: nos encontrávamos para almoçar em um restaurante, a tarde íamos em algum museu ou show e terminávamos a noite em um bar bebendo bastante até a madrugada. lá pelo quarto ou quinto dia, decidi sair sozinho para explorar a cidade. o roteiro se repetiu, mas dessa vez, sem companhias, eu podia chegar e sair a qualquer hora, errar caminhos, comer onde quisesse e fazer tudo no meu tempo. terminei a noite em um bar, bebendo uma caipirinha superfaturada e assistindo a uma partida de futebol com torcedores da mesa ao lado. são bernardo contra santo andré. as coisas que lembramos. na metade do segundo tempo, me senti entediado e percebi que era hora de tirar o time de campo; me despedi dos amigos de uma noite, paguei a conta e saí do bar para pedir um uber. do lado de fora, encontrei Ela, apoiada em uma lata de lixo, fumando um cigarro branco enquanto mexia no celular.
um pouco perdido com nomes de ruas e bairros que não carregam siglas e números como em brasília, perguntei se era mais fácil chamar o motorista aqui ou na rua da frente, que me parecia mais movimentada. Ela logo percebeu que eu era de fora e riu discretamente. não respondeu. voltou a olhar o celular. irritado com a falta de educação retornei para a porta do bar e tentei chamar o uber. dois cancelaram e o terceiro me enrolou tanto que eu cancelei a corrida. pensei em mandar mensagem para meus amigos perguntando onde estavam e se poderia encontrá-los. antes que eu pudesse digitar, Ela veio até mim e perguntou se eu queria beber alguma coisa.
acredito que na vida existem momentos especiais que são determinantes para as próximas horas, dias, meses e anos, mas dificilmente os percebemos. são instantes que exigem muita atenção. confesso que me falta a malícia de desconfiar de estranhos, então aceitei. ainda estava irritado com a falta de educação, mas não é todo dia que uma mulher me chama pra beber. bebemos por umas duas horas na porta do bar até o garçom nos enxotar.
Ela tinha cursado dois anos de geografia, desistido e começado a trabalhar em uma editora de livros pedagógicos. sua família morava no interior do estado, por isso carregava aquele sotaque bem paulista (ou paulistano? nunca sei), gostava daquelas bandas como joy division e the cure, fumava um cigarro atrás do outro e ria bastante quando eu exagerava nas piadas sobre brasília ser uma roça. nem eu acredito nisso, mas gosto de fazer a plateia feliz. Ela ria com um largo sorriso de boca fechada, constantemente pensava por alguns segundos antes de responder e tinha unhas bem longas. conversamos sobre nossas cidades, tatuagens, parentes, carnaval e relacionamentos. contei, em minutos, rapidamente, engolindo as palavras e emendando frases sem respirar, como numa retrospectiva de episódio, sobre meus últimos dois relacionamentos. há algo no anonimato alheio que me permite falar sem parar, e de certa forma eu acho que já sabia que nunca mais a veria, então qualquer confissão morreria ali. ao final do meu relato, Ela suspirou e disse “terminei com o Gustavo tem uns seis meses e desde então ele sumiu”, com naturalidade, como se eu conhecesse o Gustavo. eu também não quis perguntar mais nada. em algum momento, a conversa descambou para misticismo e movimento new age. ela me disse que acreditava em tudo e que tudo existia, que o homem tem uma conexão com o metafísico e existem milhares de formas de encontrar essa conexão, basta achar a sua. todas as religiões seriam uma tentativa de conexão com algo maior assim como todas as outras coisas da vida, como comida, sexo e música. qualquer coisa poderia ser uma ligação divina se fosse sincera. eu discordei e fui extremamente racional nos meus argumentos numa tentativa de me impor na conversa. fiz minha própria réplica e tréplica, contestei e discuti. patético. ela parou de rir e perguntou se eu acreditava em algo, em qualquer coisa. hesitei e ela falou “você tem que beber mais”. então bebemos mais, sentados em uma mesinha do lado de fora de uma distribuidora na esquina. na segunda garrafa de vinho, ela me chamou para dormir na sua casa, e claro que aceitei.
veja bem, não estou dizendo que, desde o momento que a vi, ela não me chamou atenção. Ela é bonita, sim, mas o que eu queria mesmo era conhecer alguém de fora. passei os dias cercados de amigos que viajaram comigo, fizemos rolês só entre nós, e eu queria voltar com a lembrança de alguém novo em uma cidade nova. uma aventura única e desconhecida dos outros. até a metade da noite não senti nenhum clima entre nós; apenas falávamos besteiras atrás de besteiras e seguíamos assim, pois sou bom de papo furado, mas ruim de flerte. lá pelas duas da manhã, nossos pés se entrelaçaram embaixo da mesa e nenhum dos dois fez esforço algum para movê-los. meia palavra basta. assim que aceitei seu convite, ela quis saber se eu era alérgico a gato. eu disse que não e ela sorriu.
já no uber — que, dessa vez, não cancelou — nos beijávamos sob o olhar de reprovação do motorista. na porta de seu apartamento, nossas mãos ansiosas atrapalhavam o caminho da chave. durante todo o caminho, já muito bêbado e cansado, só conseguia pensar “meu deus, eu não vou conseguir comer essa mulher”, e agradeci ao algo maior quando ela me pediu uns minutos para ir ao banheiro. tive que fazer o esforço de não dormir no sofá enquanto ouvia o som da água correndo pela torneira do banheiro. para me manter acordado, levantei e dei uma volta na sala. não tive que fazer o esforço de fingir me interessar pelos móveis e objetos como fazemos quando entramos na casa alheia já sabendo que o elogio à decoração é protocolar. bonito esse copo. já posso tirar a roupa? tudo ali me chamava atenção: móveis muito coloridos, vários livros de poesia, alquimia, biografias, quadros religiosos, retratos de família, caixas de papelão espalhadas, três halteres no chão, um cabideiro no meio da sala, um sofá verde-limão. nada ali ornava, e quanto mais eu olhava em volta, mais me sentia tonto. dentre seus vários livros na estante notei um muito bonito, de capa dura, vermelho e de aparência envelhecida: Collected Poems 1909 - 1962. - T.S Eliot.
fui flagrado folheando o livro. pela fresta da porta do banheiro, ela me vigiava enquanto escovava os dentes e perguntou se eu gostava de Eliot. menti que sim. nunca li nada dele. ela disse que era seu poeta favorito, mas parou por aí. fiquei nervoso e disse que gostava mais de Frank O’Hara, porque era o único outro poeta estadunidense que consegui lembrar e torci para o assunto morrer. Ela fechou a porta do banheiro e voltei a me sentar no sofá. só então notei que minha roupa estava cheia de pelos de gato. por mais que eu procurasse com o olhar, não achava o gato em lugar nenhum, deduzi que ele era daquele tipo que se escondia das visitas e deveria estar camuflado entre caixas e móveis.
pode parecer trivial, mas tenho que explicar que, até esse ponto da história, ela estava com o cabelo amarrado em um grande coque. ao sair do banheiro, a vi com o cabelo solto: uma grande cortina negra que escorria pelas suas costas. silenciosa, ela veio em minha direção, segurou minha mão e me levou para seu quarto.
“podemos só dormir, amanhã é outro dia”, ela disse.
olhei as horas no meu celular e já era por volta das quatro. eu tinha marcado de ir à feira com meus amigos dali umas cinco horas. ainda bêbado e sonolento, pensei em voltar pro meu apartamento. fui fraco, não resisti. não resisto. ela começou a beijar meu pescoço enquanto passava as pontas das unhas nas minhas costas. o desejo nos leva para lugares distantes. desisti de pensar e só deixei o corpo fazer o que ele sabe fazer. estávamos a meia-luz, o luar entrava pela janela, e, lá fora, mesmo de madrugada, a cidade ainda fazia barulho. me recordo pouco dos eventos a seguir, talvez o ponto mais crucial de toda história.
em um instante, ela estava em cima de mim, coxas me prendendo, mãos no meu peito. nosso contorcionismo ao tirar as roupas. nos beijávamos enquanto eu tentava afastar seu cabelo do meu rosto. ela não parecia se incomodar com isso. calor e falta de ar. ficamos assim por alguns segundos, ou minutos, não sei. foi então que aconteceu: no meio do beijo, senti algo quente e molhado dentro da minha boca, e não era uma língua. era úmido, redondo e mole. tinha cheiro. uma bola de pelo me sufocava e, assustado, tentei cuspir. ofegante e com os olhos cobertos pelo seu cabelo, eu não conseguia enxergar nada. senti aquela nojeira se esfarelar na minha boca enquanto engasgava. a bola perdendo a forma e os pelos entrando nos meus dentes, língua, gengiva, garganta. um gosto que eu imagino que seja o equivalente a lamber o fundo de uma gaveta empoeirada.
comecei a tossir e a babar, meus olhos encheram de lágrimas e então me veio um pico de energia para me livrar daquela situação. eu não me sentia em perigo, mas confuso e desesperado para lavar a boca. agarrando sua cintura com as duas mãos, eu a empurrei para o outro lado da cama e saí correndo, completamente pelado, em direção ao banheiro. encurvado diante da pia, com a boca na torneira, eu gargarejava na tentativa de lavar dentes, língua, gengiva e garganta. depois de alguns segundos, me olhei no espelho somente para ver que não havia pelo algum. escancarei a boca e botei a língua para fora, mas, por mais que procurasse, não encontrava nada.
“você ficou maluco? o que foi isso?”, ela perguntou ao sair do quarto.
não respondi. me virei para o vaso e vomitei. não lembro de mais nada dessa noite. apaguei e, na manhã seguinte, acordei de ressaca. minha cabeça pesava uma tonelada. eu estava nu e em posição fetal em cima de um tapetinho de banheiro.
labirinto branco/preto
o Mundo parece Completo e Inteiro, e eu, seu Filho, me encaixo perfeitamente nele (…) e por isso tenho de me perguntar: de quem é a memória que está falhando? minha ou dele? poderia ele, na verdade, estar se recordando de conversas que nunca aconteceram?
aos 48 anos eu terei um infarto durante um engarrafamento
e é inevitável. eu estarei voltando do trabalho às cinco e quinze pensando no melhor caminho para buscar minha filha em algum lugar do guará para depois deixá-la na pontinha da asa norte. no meio do percurso ainda tenho que passar no mercado para comprar pão, papel toalha e duas lâmpadas. estarei preso em um engarrafamento por quarenta e cinco minutos s…
eu deixaria uma mulher bonita me transformar em gato......
Nunca imaginei que ficaria ansioso para ver a parte dois de uma possível ou não história de um homem gato em São Paulo