conheci um matador de aluguel em agosto deste ano. para evitar complicações o chamarei de Márcio. seu vulgo por aí é Capa Preta. o porquê desse nome eu não sei; só sei que é assim.
eu estava no saguão de embarque do aeroporto internacional de florianópolis - Hercílio Luz. era uma noite fria, e ventava muito. eu voltava para brasília após passar minhas férias hospedado na casa de uma amiga. ela me deixou no aeroporto, se despediu com um beijo e um abraço e pediu que eu avisasse quando meu avião pousasse. os painéis do aeroporto indicavam que meu voo atrasaria uma hora. fui até uma livraria e comprei uma revistinha de palavras cruzadas por um preço que prefiro não revelar. a máfia dos aeroportos.
gosto muito de palavras cruzadas e, às vezes, acho que gosto mais de preencher todos os espaços e sentir que finalizei a página do que realmente jogar o jogo. sim, eu sei que a ideia é literalmente preencher os espaços e eu gosto de quebrar a cabeça e descobrir que ali era pra ser um R e não um B, gosto de descobrir que o coletivo de camelos é cáfila e que cabelos brancos podem ser chamados de cãs, mas a sensação de me livrar de mais uma página é quase um orgasmo.
imagine, então, minha frustração ao deixar pela metade cinco páginas seguidas por não conseguir resolvê-las. as fáceis são fáceis demais, as médias me desafiam, e as difíceis são impossíveis. comprei uma de nível difícil e me irritei a ponto de querer rasgar a revista. larguei ela no assento ao lado e peguei meu celular para ouvir música.
minutos depois, sinto um toque no meu ombro. um senhor de uns sessenta anos está falando algo que não consigo entender, pois estou de fone.
“posso fazer?”, leio essa pergunta em seus lábios enquanto ele aponta para a revistinha.
falo que sim e volto a escutar música. de canto de olho, vejo o homem preencher, em poucos minutos, as primeiras cinco páginas que deixei pela metade. ao final da quinta página, ele se vira para mim e fala:
“ALFORGE”, enquanto aponta para a coluna de sete letras que preenchi pela metade.
tiro os fones para enxergar melhor as respostas. o cretino sabia todas, é claro: obus, gárrulos e ascite. me sobe uma inveja disfarçada de indiferença e digo que ele pode levar a revistinha consigo; não quero mais. ele percebe minha irritação, ri e pergunta meu nome. apertamos as mãos enquanto nos apresentamos e ele, sem vergonha ou discrição, me diz seu nome e conta que é um pistoleiro. eu rio até perceber que não é piada. respondo que sou um contador.
ele diz que eu devo ser bom de matemática e confessa que é ruim com os números, mas bom com as palavras. eu pergunto se ele é pistoleiro de competição - porque nesse ponto ainda quero acreditar que ele é atirador de tiro ao alvo, a modalidade olímpica, sabe? - e ele diz que não, não, você não me entendeu, eu sou pistoleiro. matador.
estamos sós em uma fileira de assentos. o saguão está praticamente vazio. é quase meia-noite. ninguém por perto escuta essa maluquice que eu estou escutando.
“como é? matador?”, eu questiono e minha boca fala mais rápido que meu cérebro: “mentira”.
nessa hora, ele ri com o corpo todo. ele diz que é verdade e que, se eu tiver um tempinho, me conta a história. olho no painel eletrônico lá em cima, ao lado do número 8 do meu portão de embarque, e digo que tenho uns quarenta minutos. pode contar. com o tempo, aprendi que com malucos você tem que trucar de volta; senão, eles não te respeitam.
e ele me contou. sua história é a seguinte:
ele nasceu em 1959, em uma cidadezinha do interior do maranhão. seu pai tinha uma fazendinha que não dava nada e, para sustentar a esposa e os dois filhos, começou a matar a mando de alguém importante na região. um dia encomendaram a alma de um fazendeiro vizinho e seu pai foi executar o serviço. levou o irmão mais velho de Márcio para aprender o ofício. nessa época, ele me diz que deveria ter por volta de uns oito ou nove anos e seu irmão uns dezesseis. o fazendeiro já esperava a emboscada e deu vários tiros, acertando o rapaz. o pai voltou corrido de lá com o primogênito sangrando na sela do cavalo. ao chegar em casa, largou o corpo do rapaz na mesa da sala. a mãe de Márcio não chorou. ela apenas disse ao marido que voltasse lá e vingasse o filho. ele voltou lá e levou dois tiros na cara. Márcio e sua mãe fugiram do maranhão e passaram os próximos dez anos pulando de cidade em cidade até chegarem em minas gerais. trabalhou desde menino como feirante, engraxate e tudo mais que você possa imaginar. numa dessas, acabou trabalhando em uma banca de jornal e me conta que foi assim que tomou gosto pelas cruzadinhas, hábito que manteve durante a vida.
por volta dos dezenove anos, conta que se apaixonou por uma prostituta e, graças à isso, ia no puteiro quase todo dia encontrá-la. ele conta tudo isso em um bom humor que não sei de onde vem. numa noite, ouviu dois homens combinando valores da morte de um terceiro e entrou na conversa, dizendo que era matador e que faria por metade do preço. até aquele dia, nunca tinha matado ninguém, mas o dinheiro era escasso, e ele trabalhava de tudo para sustentar sua mãe.
os homens entregaram a ele uma quantia enorme de dinheiro e um revólver. Márcio nunca tinha visto tanto dinheiro. saiu dali na mesma noite e matou o sujeito.
ele diz “sujeito” várias e várias vezes durante nossa conversa. também tem uma mania de fazer afirmações que parecem escritas em pedra, verdades universais e óbvias que eu deveria conhecer. seu tom é professoral. ele não quer que eu conteste, apenas escute.
“não existe herói e não existe vingança. existe quem mata e quem morre”.
depois desse dia, passou a matar quem quer que fosse. diz que errou muito ao longo dos anos até aprender o ofício. ele não mata criança nem esposa de ninguém. “crianças não merecem isso e o sujeito que manda matar a própria esposa é um covarde. a mulher que manda matar o marido tem suas razões. de resto, é uma profissão que não se pode limitar muito a clientela”.
“e também não mato mais político, é muita dor de cabeça”, ele diz, dando de ombros. “já matei muito prefeito, mas é só”.
continuou assim por décadas, até hoje. é um trabalho ingrato e sujo, mas que sempre vai existir. me conta que durante a ditadura era bom porque a polícia não investigava: dois tiros em alguém no meio da rua e ninguém falava nada. também não havia câmeras por toda parte. o grosso da sua riqueza ele fez durante os anos 90. de acordo com ele, nessa época tinha muita gente com grana disposta a apagar alguém.
nesse ponto da conversa, ele parece interessado no meu interesse. não consigo disfarçar. confesso que acho tudo isso grotesco, mas também fascinante. ele não hesita e não remenda as frases; diz tudo com precisão e confiança. ele detalha o trabalho com o pragmatismo de um cirurgião. se for um mentiroso, é o melhor que eu já conheci. ele me ensina nomes de armas e calibres, as melhores rodovias para se pegar sem ser parado pela polícia, e descreve - com mais detalhes do que eu gostaria - como se enterra um corpo.
trabalhou muito durante os anos 90, até poder comprar uma fazenda lá no maranhão. é onde ele mora hoje, com a esposa e dois filhos. ele tem uma filha mais velha - e me mostra a foto dela na tela do celular -, mas ela não mora lá; foi pra capital ser doutora. os rapazes tomam conta da fazenda. eles criam e vendem porcos. dá um dinheiro bom. de tempos em tempos, ele ainda aceita algum trabalho, mas está ficando sem forças. ele confessa que continua nessa porque é bom no que faz e porque entendeu como se faz.
ele percebe meu olhar de curiosidade e começa a coçar a barriga. é um daqueles homens de pernas e braços grossos e com aquela barriga grande, inflada, que parece um balão, mas muito dura.
“você tem que olhar nos olhos do sujeito, senão não consegue dormir a noite. é pior, eu sei, mas se você não olhar, é covardia. também só se mata com mais de um tiro. já passei por algumas situações de achar que o sujeito estava morto, mas tive que voltar depois de algumas horas para terminar o serviço”.
ele me diz que sabe que está velho, mas ainda tem muita lenha pra queimar. duvido, mas fico calado. hoje em dia, só viaja se for de avião. cansou de ônibus. a passagem de avião já está embutida no valor que ele cobra. fico imaginando como ele declara seu imposto de renda. ele comenta que tem clientes no brasil todo porque o que não falta é gente. “todo dia tem gente nascendo e tem gente morrendo.”
só consegui perguntar se ele não tinha medo de morrer. ele disse que não. três anos atrás, sobreviveu a um ‘câncer no cu’ e, se não morreu disso, não morre de mais nada. já levou bala, facada, mordida e chute, mas durante a vida toda o que chegou mais perto de levar ele foi o câncer.
a voz abafada do alto-falante do saguão chama os passageiros nível diamante para entrarem na fila de embarque do próximo voo em direção a são luís. ele se levanta, coloca a mochila nas costas, aperta minha mão com firmeza e se despede. antes de ir, rasga meia página da revistinha, anota seu número de celular e diz que, se eu precisar, posso mandar mensagem para ele: só dizer que é o rapaz do aeroporto e que quer comprar uma leitoa, não um porco. o resto a gente acerta.
de tempos em tempos, aparece para mim, no status do whatsapp, uma foto dele com a esposa e os três filhos. linda família.
são três e vinte sete da madrugada
e você acordou com fome. o celular na mesinha de cabeceira ilumina o quarto quando você o desbloqueia para ver que horas são. ela dorme ao seu lado com dois travesseiros sob a cabeça e um entre as pernas. vocês decidiram só comer alguma coisa leve antes de dormir para evitar a azia. ainda sonolento você faz uma lista mental de tudo que tem na fruteira, …
o Soldado, a Montanha e a Árvore
era uma vez um vilarejo no alto de uma montanha. as pessoas que moravam ali eram felizes e tranquilas. elas plantavam tomates e criavam carneiros. todas as manhãs, as pessoas que ali moravam saíam de suas casas, levantavam os braços e agradeciam ao sol. e assim, a vida seguia.
já te falei isso outra vez mas quero reforçar que me diverte muito o JEITO que vc escreve !!!
diferente do narrador eu acredito piamente que o capa preta tem, sim, muita lenha pra queimar ainda